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Os primeiros cinco anos da recuperação judicial no país: dificuldades e controvérsias

    Marcelo Gazzi Taddei

    Advogado. Parecerista. Administrador Judicial em processos de Recuperação Judicial e Falência. Graduado e Mestre em Direito pela UNESP – Franca/SP. Professor de Direito Empresarial na UNIP – São José do Rio Preto, SP. Autor de artigos científicos em revistas jurídicas e co autor de livros. Professor convidado em cursos de Pós Graduação e na Escola Superior de Advocacia da OAB.

    Publicado na Revista Jurídica Empresarial. n. 15. pp. 51-89. jul./ago. 2010. Porto Alegre, RS.

    1.  Obstáculos que dificultam o pleno êxito do processo recuperatório

    A Lei n° 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, introduziu no país o importante instituto da recuperação judicial, extinguindo do ordenamento jurídico nacional as antigas concordatas. O novo instituto, destinado à superação da crise empresarial e respectiva preservação da empresa, despertou o entusiasmo de muitos até certa fase da tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional, correspondendo a uma importante inovação oferecida aos empresários que atuam no Brasil, a exemplo do que se verifica em outros países.

    O aludido entusiasmo foi arrefecido pela contundente e notória interferência do setor financeiro na elaboração da lei, que se mostrou determinante para uma mudança de rumo destinada a preservar os créditos de origem financeira dos efeitos da recuperação judicial, conforme se verifica no artigo 49, §§ 3° e 4° da lei de regência. Referido favorecimento, justificado para permitir a redução do custo do crédito no país, mostrou-se inócuo para a finalidade prevista, correspondendo a um dos maiores obstáculos para o êxito de muitos processos de recuperação judicial, o que gerou a realização de alguns ajustes nos casos concretos, conforme se verifica nas decisões judiciais que ampliam o improrrogável prazo de suspensão de 180 dias previsto nos arts. 6°, §4° e 49, §3°, objetivando a manutenção de bens essenciais no estabelecimento da recuperanda.

    A recuperação judicial tem por finalidade principal a reestruturação da empresa para permitir a superação da crise econômica, financeira e/ou patrimonial. A reestruturação exige medidas destinadas a permitir a viabilidade econômica e financeira do empreendimento, capacitação técnica e gerencial da administração, credibilidade e transparência interna e externa da administração, estrutura de capital e organização patrimonial, bem como a capacidade de acesso a capitais e créditos. Entretanto, em grande parte dos processos de recuperação judicial os planos resumem-se à ampliação dos prazos para o pagamento das dívidas e ao deságio, apresentando soluções que se mostram, muitas vezes, incapazes de permitir a reestruturação necessária à efetiva superação da crise.

    Outra dificuldade identificada refere-se à organização e preparação do Poder Judiciário em âmbito nacional, mostrando-se imprescindível a criação de varas especializadas, diante da reconhecida especificidade e complexidade da matéria, que gera controvérsias até mesmo entre os mais experientes especialistas. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui uma Câmara Reservada à Falência e Recuperação, não obstante, referida Câmara já alterou seu posicionamento sobre algumas questões da recuperação judicial (v.g. recorribilidade da decisão que defere o processamento da recuperação judicial – Ag.I. 6041604800,  reserva de 40% da remuneração do administrador judicial – Ag.I. 6876964000) e apresenta entendimento conflitante com o do Superior Tribunal de Justiça sobre importante tópico da lei, conforme será apresentado no presente artigo. Esses fatos demonstram toda a complexidade do tema.

    No mesmo sentido, destaca-se a importância do Administrador Judicial, que se mostra essencial como órgão auxiliar do juiz no processo de recuperação judicial, devendo ser profissional idôneo e profundo conhecedor do Direito Empresarial, a fim de contribuir para o seguro e correto desenvolvimento do processo.

    A atuação dos credores também se apresenta como um obstáculo ao êxito da recuperação judicial. Muitas vezes, a simples omissão dos credores em participar das assembleias gerais permite ajustes nos planos por aqueles credores que conduzem a recuperação segundo os seus próprios interesses. Embora a lei busque a participação ativa dos credores na recuperação, o que se verifica é a inibição dos credores em participarem ativamente dos processos de recuperação. A ausência da constituição do Comitê de Credores, indicado para as recuperações mais complexas, além do custo e da responsabilidade dos seus membros, também decorre do desinteresse dos credores.

    Em relação aos efeitos decorrentes da distribuição da recuperação judicial, a maior dificuldade enfrentada pela recuperanda é o acesso ao crédito. O pedido de recuperação resulta na imediata e intransponível restrição ao crédito à recuperanda, justamente no momento em que mais se precisa dele. Nem mesmo os bancos oficiais concedem crédito à recuperanda, diante da insuperável análise de riscos, que trava o sistema e impede a liberação do crédito.

    Se não bastasse à restrição ao crédito imposta à recuperanda, os contratos de execução continuada celebrados pela recuperanda que permitem o acesso ao crédito, como o contrato de desconto bancário, são extintos pela simples apresentação do pedido de recuperação judicial, ainda que não exista qualquer inadimplemento. É comum nesses contratos a previsão do pedido de recuperação judicial do contratante como causa de resolução contratual. O ilustre jurista Jorge Lobo, ao tratar da questão, assevera que “a ação de recuperação judicial não é causa de resilição unilateral de contrato assinado com o devedor, mesmo que haja cláusula resolutória expressa prevendo a denúncia em caso de recuperação judicial ou falência” (LOBO, 2007, p.137).

    A Lei n° 11.101/2005, objetivando estimular os credores da recuperanda a  continuarem a negociar com ela, bem como incentivar o surgimento de novos parceiros comerciais, prevê no art. 67 que os créditos decorrentes de obrigações contraídas pela recuperanda durante a recuperação judicial, inclusive os referentes às despesas com fornecedores de bens ou serviços e contratos de mútuo, são considerados extraconcursais em caso de decretação de falência, respeitada a ordem prevista no art. 83.

    Referido dispositivo, em seu parágrafo único, estabelece ainda que os créditos quirografários sujeitos à recuperação judicial pertencentes a fornecedores de bens ou serviços que continuarem a provê-los normalmente após o pedido de recuperação judicial terão privilégio geral de recebimento em caso de decretação de falência, no limite do valor dos bens ou serviços fornecidos durante o período de recuperação.

    Se por qualquer motivo a recuperação judicial convolar-se em falência, os credores posteriores à distribuição do pedido serão reclassificados. Além de garantir o recebimento prioritário dos créditos extraconcursais, a lei eleva os créditos quirografários anteriores ao ajuizamento da ação de recuperação judicial à categoria de créditos com privilégio geral, estabelecendo como limite o valor dos bens ou serviços fornecidos durante o processo de recuperação.

    No caso, se o credor quirografário detinha crédito de R$200.000,00 na data do pedido inicial e durante o processo de recuperação firmou contratos no valor de R$100.000,00, terá direito, no caso de decretação da falência da recuperanda, à reclassificação de parte de seu crédito originário, passando então a credor quirografário por R$100.000,00 e a credor com privilégio geral por R$100.000,00, além de credor extraconcursal pelo que não houver recebido durante a recuperação (LOBO, 2007, p.196).

    Fábio Ulhoa Coelho ressalta que a reclassificação em questão alcança apenas os créditos negociais, os tributos devidos em razão de fatos geradores ocorridos durante a tramitação da recuperação judicial decorrem da lei, o credor tributário não está assumindo conscientemente um risco. Não há, por isso, motivos para reclassificar os créditos fiscais, como qualquer outro derivado da lei, como responsabilidade civil por ato ilícito ou responsabilidade objetiva (COELHO, 2005, p.181).

    Conforme se observa, o legislador buscou meios de incentivar a celebração de negócios com a recuperanda durante a recuperação judicial, entretanto, diante do risco acentuado de quebra previsto pelos credores, a recuperanda tem o crédito imediatamente cancelado no setor financeiro e encontra dificuldades para a obtenção de prazo de pagamento perante os fornecedores de produtos e serviços. A restrição ao crédito no setor financeiro e a dificuldade de concessão de prazo para pagamento junto aos fornecedores, constituem, no âmbito operacional, as maiores dificuldades identificadas para as sociedades empresárias em recuperação judicial, mostrando-se imprescindível a criação premente de uma linha de crédito especial para os devedores em recuperação judicial.

    2. O delineamento da recuperação judicial

    A recuperação judicial corresponde a um benefício legal à disposição do empresário individual e da sociedade empresária em crise que exploram regularmente a atividade econômica há mais de dois anos. Objetiva a superação da crise empresarial, permitindo a continuidade da atividade econômica para evitar a falência, tendo por finalidade, nos termos do art. 47 da Lei n° 11.101/2005,  a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e do interesse dos credores no intuito de promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

    O processo de recuperação judicial é promovido por iniciativa do próprio empresário em crise, que apresenta perante o Poder Judiciário o pedido do benefício. Verificando o atendimento a todos os requisitos legais, o juiz defere o processamento da recuperação judicial, abrindo-se prazo para os credores realizarem as habilitações de crédito perante o administrador judicial e para o devedor apresentar o plano de recuperação judicial.

    Neste plano, o devedor apresentará os meios que serão utilizados para a superação da crise. Normalmente o plano prevê a dilação para o pagamento das dívidas, redução no valor a ser pago, venda de filiais, estratégias comerciais e administrativas, dentre outros meios apresentados, em caráter exemplificativo, no art. 50 da lei de regência. Ressalta-se que, com exceção das dívidas trabalhistas, na recuperação judicial comum não há limite legal para a dilação no pagamento das dívidas, existindo casos em que a previsão de pagamentos supera amplamente o prazo de cinco anos. Não resta dúvida que os meios de recuperação previstos no plano impõem sacrifícios aos credores, sendo, muitas vezes, a única forma que alguns deles possuem para garantir o recebimento dos seus créditos.

    O plano de recuperação judicial é submetido à apreciação dos próprios credores que, diante da apresentação de objeções consistentes ao plano, provocam a convocação da Assembleia Geral de Credores para a realização da sua análise, que poderá determinar a sua aprovação, modificação ou rejeição. A rejeição do plano implica na determinação legal da convolação da recuperação judicial em falência, o que, de certa forma, conduz a sua aprovação pelos credores ou a apresentação de alterações ao plano, sujeitas a anuência expressa da recuperanda.

    Interferências no projeto de lei durante a sua tramitação no Congresso Nacional afastaram da recuperação judicial as dívidas decorrentes de contratos de arrendamento mercantil (leasing), de alienação fiduciária e de adiantamento de contrato de câmbio para exportação, dentre outras previstas no art. 49 da Lei n° 11.101/2005. Durante o prazo de 180 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, é vedada a retirada do estabelecimento da recuperanda dos bens de capital essenciais ao exercício da atividade empresarial, existindo decisões ampliando esse prazo para assegurar a preservação da empresa.

    Não havendo objeções dos credores ou aprovado o plano de recuperação judicial pela Assembleia Geral de Credores, a recuperanda deve apresentar certidões negativas de débitos tributários para permitir o deferimento da recuperação judicial. Diante da notória dificuldade no atendimento à exigência legal, vista como sanção política, a recuperação judicial vem sendo deferida sem a exigência prevista, conforme entendimento jurisprudencial.

    Deferida a recuperação judicial, a recuperanda e os credores sujeitos ao plano ficam vinculados ao seu cumprimento, ingressando o processo de recuperação judicial no período de observação de dois anos, em que o juiz, o administrador judicial e o comitê de credores, caso exista, fiscalizam o cumprimento das obrigações pela recuperanda. Durante este período, a recuperação judicial transforma-se em falência no caso de descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano pela recuperanda.

    O fim do período de observação de dois anos determina o encerramento do processo de recuperação judicial. Caso o plano apresente obrigações com o cumprimento previsto para após o encerramento do processo, hipótese frequente, referidas obrigações continuarão sob a fiscalização dos credores, constituindo o plano de recuperação judicial título executivo judicial. O cumprimento de todas as obrigações previstas no plano pela recuperanda assegura o êxito da recuperação judicial, promovendo a preservação da empresa e a sua função social.

    3. As controvérsias identificadas nos cinco anos de recuperação judicial

    Ao longo dos cinco anos de aplicação da Lei n° 11.101/2005, em relação à recuperação judicial foi possível a identificação de vários pontos controversos, que muitas vezes surgem pelo fato da questão não se encontrar disciplinada de forma específica na lei, outras vezes em decorrência da necessária interpretação sistemática de seus artigos com a finalidade de assegurar o pleno êxito da recuperação judicial, nos termos do art 47, diante das alterações introduzidas no projeto de lei por influência do setor financeiro.

    Diante dos inúmeros pontos controvertidos e polêmicos, não será possível a apresentação e análise de todos no presente artigo. Questões referentes à cessão fiduciária de créditos e a liberação das travas bancárias, possibilidade de inclusão no plano de recuperação judicial dos créditos financeiros excluídos pelo art. 49, §§3° e 4º,  remuneração do administrador judicial e a reserva de 40%, cessão de crédito e direito de voto, novação recuperacional, representação dos credores trabalhistas na assembleia geral de credores, prorrogação dos prazos previstos na lei, nulidade ou anulabilidade das deliberações dos credores ou da Assembleia Geral de Credores, abuso do direito de voto, juízo universal  da recuperação judicial e o conflito de competência, bloqueio on line, dentre outros pontos polêmicos, embora aqui mencionados, não serão abordados nesta oportunidade, ficando apenas consignados.

    Dentre os pontos controvertidos identificados, são apresentados na sequência: a) possibilidade do litisconsórcio ativo na recuperação judicial; b) sujeição do produtor rural à recuperação judicial; c) definição do valor do bem dado em garantia real para a definição do voto na assembleia geral de credores; d) possibilidade da ampliação do prazo de 180 dias para assegurar a manutenção dos bens essenciais no estabelecimento da recuperanda nos contratos de alienação fiduciária e de arrendamento mercantil; e) apresentação de objeção e a convocação da assembleia geral de credores; e f) efeitos da recuperação judicial em relação aos coobrigados.

    3.1. Litisconsórcio ativo na recuperação judicial

    A Lei n° 11.101/2005 não trata da possibilidade do pedido de recuperação judicial apresentado por mais de um devedor, entretanto, são inúmeros os casos de litisconsórcio ativo em recuperação judicial. Ao tratar do tema, Ricardo Brito Costa conclui:

    “A formação do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, a despeito da ausência de previsão na Lei n° 11.101/2005, é possível, em se tratando de empresas que integrem um mesmo grupo econômico (de fato ou de direito). Nesse caso, mesmo havendo empresas do grupo com operações concentradas em foros diversos, o conceito ampliado de ‘empresa’ (que deve refletir o atual estágio do capitalismo abrangendo o ‘grupo econômico’), para os fins da Lei n° 11.101/2005, permite estabelecer a competência do foro do local em que se situa a principal unidade (estabelecimento) do grupo de sociedades. O litisconsórcio ativo, formado pelas empresas que integram o grupo econômico, não viola a sistemática da Lei n° 11.101/2005 e atende ao Princípio basilar da Preservação da Empresa. A estruturação do plano de recuperação, contudo, há de merecer cuidadosa atenção para que não haja violação de direitos dos credores” (COSTA, 2009, P. 182)

    No caso de grupo de empresas, não há na lei previsão que obrigue a presença de todas as sociedades empresárias integrantes do grupo econômico no processo de recuperação judicial, que pode abranger uma ou algumas delas. No caso, o litisconsórcio formado no pólo ativo da recuperação judicial será facultativo, constituindo-se de acordo com a vontade das partes.

    A opção das devedoras pelo litisconsórcio ativo exige a apresentação de um único plano de recuperação judicial e submete todas as sociedades empresárias às conseqüências decorrentes da sua aprovação ou rejeição. Nesse sentido, se por um lado a aprovação do plano beneficia todas as sociedades empresárias integrantes do grupo, havendo a rejeição do plano, ou outra hipótese prevista no art. 73 que determine a convolação da recuperação judicial em falência, todas as sociedades empresárias integrantes do litisconsórcio estarão sujeitas à sentença de falência e às conseqüências decorrentes.

    A possibilidade do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, quando afastada, fundamenta-se na regra de competência presente no art. 3° da Lei n° 11.101/2005, que define como competente para o deferimento da recuperação judicial o Juízo do local do principal estabelecimento do devedor. Por se tratar de regra de competência absoluta, não admite prorrogação voluntária.

    De acordo com a regra de competência, a jurisprudência tem negado a formação do litisconsórcio ativo na recuperação judicial na hipótese das sociedades empresárias não possuírem o principal estabelecimento no mesmo foro. Conforme se verifica nas seguintes decisões da Câmara Reservada à Falência e Recuperação, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

    “Agravo de instrumento. Recuperação judicial requerida em litisconsórcio por duas sociedades empresárias distintas, cada uma delas com sede social em comarcas diversas. Alegação de serem integrantes do mesmo grupo econômico. Decisão que determina a emenda da inicial em razão da inviabilidade do litisconsórcio ativo. Natureza contratual da recuperação judicial que impõe se facilite a presença dos credores na assembleia-geral para examinar o plano da devedora. A distância entre os estabelecimentos principais das empresas requerentes causa dificuldades incontornáveis à participação dos credores, notadamente os trabalhadores, nos conclaves assembleares realizados em comarcas distintas. Princípio da preservação da empresa e da proteção aos trabalhadores, ambos de estatura constitucional que, se em conflito, devem ser objeto de ponderação para a prevalência do mais importante. Tutela dos trabalhadores em razão da hipossuficiência. Manutenção da decisão que repeliu a possibilidade do litisconsórcio ativo no caso vertente, mantida a possibilidade da emenda da inicial para que cada uma das empresas requeira a medida recuperatória individualmente, observada a regra da competência absoluta do art. 3o, da LRF. Precedente da Câmara. ‘Manutenção da liminar para obstar a suspensão do fornecimento de serviços de telefonia por débitos anteriores ao requerimento da recuperação, que se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. Agravo provido, em parte, revogado o efeito suspensivo, com determinação de imediato processamento da recuperação judicial’. (TJSP, Ag. I. n° 6453304400. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 15.09.2009).

    “Apelação. Recuperação Judicial requerida em litisconsórcio por três sociedades empresárias distintas, cada uma delas com sede social em Estados diversos da Federação (São Paulo, Minas Gerais e Bahia). Alegação de serem integrantes do mesmo grupo econômico. Deferimento do processamento da recuperação judicial. Posterior constatação da inviabilidade do processamento da medida em litisconsórcio ativo, em face da existência de credores distintos, domiciliados em Estados diferentes. Reconhecimento da incompetência absoluta do juiz requerida inicialmente a recuperação judicial. Extinção do processo, sem resolução do mérito, por força do indeferimento da inicial. Matéria de ordem pública, sobre a qual não ocorre preclusão nas instâncias ordinárias. Soberania da assembleia-geral de credores restrita à deliberação sobre o plano de recuperação judicial, mas não sobre pressupostos ou condições da ação. Natureza contratual da recuperação judicial que impõe se facilite a presença dos credores na assembleia-geral para examinar o plano da devedora. A grande distância entre os estabelecimentos principais das empresas requerentes causa dificuldades incontornáveis à participação dos credores, notadamente os trabalhadores, nos conclaves assembleares realizados em Estados diversos da Federação. Princípio da preservação da empresa e da proteção aos trabalhadores, ambos de estatura constitucional que, se em conflito, devem ser objeto de ponderação para a prevalência do mais importante. Tutela dos trabalhadores em razão da hipossuficiência. Extinção do processo de recuperação judicial, sem resolução do mérito, mantida, situação que não impede que cada uma das empresas requeira a medida recuperatória individualmente, observada a regra da competência absoluta do art. 3o, da LRF. Apelo das empresas desprovido. Apelação de credora que se insurgiu contra o processamento da recuperação no juízo original. Pretensão à condenação das devedoras em honorários advocatícios. Inviabilidade. Inteligência do art. 5o, II, da Lei n° 11.101/2005. Não incidência de honorários sucumbenciais na recuperação judicial extinta. Apelo da credora improvido.” (TJSP. Apelação sem Revisão n° 6252064200. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 09.06.2009)

    3.2. A recuperação judicial e o produtor rural

    De acordo com o art. 1° da Lei n° 11.101/2005, a Lei disciplina  a recuperação judicial, a falência e a recuperação extrajudicial do empresário e da sociedade empresária. O art. 966 do Código Civil de 2002 define empresário de acordo com a teoria italiana da empresa, prevendo:

    “Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

    Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”

    Por sua vez, o art. 982 do referido diploma legal define sociedade empresária:

    “Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e , simples, as demais.

    Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”

    De acordo com o tratamento previsto no Código Civil de 2002, que tem como base o Código Civil italiano de 1942, quem se dedica à atividade rural poderá ingressar no regime empresarial por opção, mediante a realização do arquivamento no Registro Público de Empresas, a cargo das Juntas Comerciais. Nesse sentido, o art. 971 do Código Civil:

    “Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.”

    Conforme se verifica, o produtor rural possui a opção de ingressar no regime empresarial e, fazendo essa opção por meio do arquivamento na Junta Comercial, fica equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito ao registro (entenda-se o descrito no art. 966, CC 2002). Estando equiparado ao empresário, estará sujeito a todas as obrigações previstas aos empresários, sujeitando-se à falência e aos seus efeitos, inclusive no âmbito penal. Por outro lado, gozará de todos os benefícios previstos aos empresários, podendo requerer recuperação judicial e extrajudicial.

    De acordo com ordenamento jurídico vigente, para o produtor rural obter o deferimento do processamento da recuperação judicial precisará ter optado pelo regime empresarial, por meio do arquivamento na Junta Comercial. A ausência do arquivamento no Registro Público de Empresas afasta do produtor rural a possibilidade da recuperação judicial, já que nesse caso não se enquadra no art. 1° da Lei n° 11.101/2005, conforme dispõe o art. 971 c/c o art. 966 do diploma civil. Além disso, o produtor rural que não realizou a opção pelo regime empresarial não preenche os requisitos previstos no art. 51 da Lei n° 11.101/2005, notadamente o previsto no inciso V (certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas).

    Nesse sentido, as seguintes decisões:

    “Recuperação judicial. Ação ajuizada por produtores rurais que não estão registrados na Junta Comercial. ‘O empresário rural será tratado como empresário se assim o quiser, isto é, se se inscrever no Registro das Empresas, caso em que será considerado um empresário, igual aos outros’. ‘A opção pelo registro na Junta Comercial poderá se justificar para que, desfrutando da posição jurídica de empresário, o empresário rural possa se valer das figuras da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, que se apresentam como eficientes meios de viabilizar a reestruturação e preservação da atividade empresarial, instrumentos bem mais abrangentes e eficazes do que aquele posto à disposição do devedor civil (concordata civil – Código de Processo Civil, artigo 783)’. Só a partir da opção pelo registro, estará o empresário rural sujeito integralmente ao regime aplicado ao empresário comum. Sentença mantida. Apelação não provida. (TJSP. Apelação n° 994092930317. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Romeu Ricupero. DJ 06.04.2010)

    “Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Pedido formulado por produtor rural não inscrito na Junta Comercial. Conhecimento de agravo tirado contra decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Decisão que reconhece que o produtor rural é empresário rural inscrito no CNPJ e tem legitimidade para requerer a recuperação. Precedente do STJ que admite a recorribilidade da decisão que examina a legitimidade ativa do requerente da recuperação judicial. Produtor rural que não se vale da faculdade do art. 971 do Código Civil não é equiparado a empresário para os fins do art. 1o da Lei n° 11.101/2005 e não atende ao requisito do art. 48 do mesmo diploma legal. A inscrição do produtor rural no CNPJ-Receita Federal, não o equipara a empresário para fins do direito à recuperação judicial. Agravos conhecidos e providos para reformar a decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial. Extinção do processo de recuperação judicial, sem resolução de mérito, com base no art. 267, I, do CPC.” (TJSP. Ag. I. n° 6481984200. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 15.09.2009)

    Em relação ao arquivamento do produtor rural na Junta Comercial a fim de atender às exigências legais e obter o deferimento do processamento da recuperação judicial, questiona-se a possibilidade do produtor rural realizar a opção imediatamente antes da apresentação do pedido de recuperação judicial. Nessa hipótese, considera-se o período de desenvolvimento da atividade como produtor rural sem registro na Junta Comercial para atender ao requisito previsto no art. 48 da Lei n° 11.101/2005, que exige o exercício regular da atividade econômica há mais de 2 anos?

    O Tribunal de Justiça de São Paulo já sinalizou a possibilidade no caso de grupo empresarial, conforme se verifica abaixo, resta saber se o mesmo entendimento será adotado para a atividade econômica desenvolvida antes do arquivamento na Junta Comercial como  produtor rural.

    “Agravo de Instrumento. Recuperação judicial. Pronunciamento judicial que apenas defere o processamento da recuperação judicial. Recurso pretendendo a revogação do deferimento, sob a alegação central de não exercício regular da atividade empresária pela recuperanda há mais de dois anos no momento do pedido. Ato que tem a natureza de decisão interlocutória com potencial para causar gravame aos credores e terceiros interessados, além de poder afrontar a lei de ordem pública. Alteração do entendimento que proclamava a irrecorribilidade do ato previsto no artigo 52 da Lei n° 11.101/2005. Agravo conhecido. Falta de recolhimento do porte de retorno equivalente a preparo incompleto, que não autoriza a imediata aplicação da deserção, configurada hipótese de insuficiência. Agravante que, intimado, complementa do preparo com o recolhimento do porte de retorno. Deserção não reconhecida. O requisito do artigo 48, ‘caput’, da Lei n° 11.101/2005, ‘exercício regular das atividades empresariais há mais de dois anos no momento do pedido de recuperação judicial’, não exige inscrição na Junta Comercial por tal período mínimo. Integrando a requerente da recuperação judicial grupo econômico existente há 15 anos, e sendo constituída há menos de dois anos mediante transferência de ativos das empresas do grupo para prosseguir no exercício de atividade já exercida por tais empresas, é de se ter como atendido o pressuposto do biênio mínimo de atividade empresarial no momento do pedido. Agravo conhecido e desprovido, mantida a decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial” (TJSP. Ag. I. 6041604800. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 04.03.2009)

    3.3. A definição do valor do bem gravado e o voto do credor com garantia real na análise do plano de recuperação judicial

    Uma questão que desperta interesse na definição dos votos na Assembleia Geral de Credores é a do credor com garantia real, que na análise do plano de recuperação judicial, nos termos dos arts. 41 e 45 da Lei n° 11.101/2005 vota na classe II (credores com garantia real) até o limite do valor do bem dado em garantia, votando na classe III (credores quirografários, privilégio especial, privilégio geral, subordinados) pelo valor que excede o limite de garantia.

    Para a votação do plano de recuperação judicial o art. 45  estabelece o sistema da dupla maioria, dividindo os credores em três classes, previstas no art. 41. Nas classes II (credores com garantia real, até o limite do bem gravado) e III (credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados, credores com garantia real pelo valor que excedeu a garantia), a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes. Na classe I (credores trabalhistas ou decorrentes de acidente do trabalho), a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor do crédito.

    O quadro abaixo demonstra a divisão dos credores e os quoruns exigidos para a aprovação do plano de recuperação judicial:

    QUORUM DE APROVAÇÃO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Art. 45
    Classe de Credores (art. 41)Natureza do créditoVoto Quantitativo (n° de credores)Voto Qualitativo (valor crédito)Quorum de deliberação
    Classe ITrabalhistas  (sem limite)        e acidentáriosMaioria simples (mais da metade dos credores   presentes)(NÃO) Não se considera o valor dos créditos desta classeSomente por cabeça: maioria simples
    Classe IIGarantia real (até o limite da garantia)Maioria simples (mais da metade dos credores   presentes)Maioria simples (mais da metade do valor total dos créditos desta classe presentes na AGC )Por cabeça: maioria simples Por crédito: maioria simples
    Classe IIIQuirografários – Privilégio geral-  Privilégio especial – Subordinados e credores com garantia real ao que excedeu o limite de garantiaMaioria simples (mais da metade dos credores   presentes)Maioria simples (mais da metade do valor total dos créditos desta classe presentes na AGC)Por cabeça: maioria simples Por crédito: maioria simples

    Conforme se verifica, o credor com garantia real vota na classe II até o limite do valor do bem gravado, votando com os credores da classe III pelo valor do crédito que supera o valor do bem dado em garantia. Diante da divisão legal estabelecida, é importante definir o valor do bem dado em garantia na hipótese dele não ser manifestamente superior ao valor do crédito, já que o resultado referente à análise do plano na Assembleia Geral de Credores poderá depender da diferença apurada. Nesse contexto, constata-se que a legislação não prevê, de forma específica, o momento da definição do valor do bem dado em garantia, nem mesmo o critério a ser utilizado.

    De acordo com o art. 9°, II, da Lei n° 11.101/2005, a habilitação de crédito deverá conter “o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação”. Na falência, o art. 83, §1°, estabelece que o valor do bem gravado corresponderá à importância efetivamente arrecadada com a sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.

    Ao tratar do voto do credor na Assembleia Geral de Credores, o art. 38, parágrafo único, determina que para fins exclusivos de votação em assembleia, o crédito em moeda estrangeira será convertido para moeda nacional pelo câmbio da véspera da data da realização da assembleia.

    Nesse contexto, parece que a melhor solução é a realização da avaliação do bem gravado pelo valor de mercado, considerando a data da distribuição do pedido de recuperação judicial. Estabelecido o momento para a realização da avaliação, surge outra questão, a quem compete a realização da avaliação: ao credor com garantia real, à recuperanda ou ao administrador judicial?

    Nos termos do art. 9°, II, caberia ao credor com garantia real apresentar a avaliação do bem no momento da habilitação do crédito, mediante a apresentação de laudo fundamentado elaborado por empresa especializada ou por profissional legalmente habilitado. Entretanto, não há previsão legal específica para a respectiva exigência e a avaliação do bem realizada pelo próprio credor beneficiário não se mostra adequada ao caso.

    Outra solução possível para o caso é a realização da avaliação pelo próprio administrador judicial. A exemplo do que ocorre na falência, nos termos do art. 108 da Lei n° 11.101/2005, caberia ao administrador judicial proceder à avaliação do bem gravado e,  não se encontrado habilitado para fazê-lo, contrataria avaliadores, de preferência oficiais, mediante autorização judicial, conforme disposto no art. 22, III, “h”, da lei de regência. Nessa hipótese, o laudo de avaliação deve ser apresentado juntamente com a relação de credores prevista no art. 7°, §2°, a fim de permitir a manifestação dos interessados antes da realização da Assembleia Geral de Credores.

    Ressalta-se, ainda, o disposto no art. 53, III, da Lei n° 11.101/2005, prevendo que o plano de recuperação judicial deverá conter “laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.” De acordo com referido dispositivo, os valores dos bens do devedor são definidos no plano de recuperação e ficam sob a responsabilidade da recuperanda.

    No caso, o valor constante no laudo de avaliação subscrito por profissional legalmente habilitado ou por empresa especializada, desde que estabeleça avaliação individual para os bens da recuperanda, poderá ser o documento utilizado para atender ao disposto no art. 41, § 2°, da Lei n 11.101/2005. Entretanto, o que se verifica nos casos concretos é a apresentação de uma avaliação global de bens por espécie.

    Seja qual for o entendimento a ser adotado pela jurisprudência, a avaliação conferida ao bem sempre estará sujeita à impugnação por qualquer interessado. No caso do bem gravado apresentar valor manifestamente superior ao valor do crédito, a definição do critério, da forma e do momento da avaliação perde a importância, já que o voto do credor, nesse caso, será considerado apenas na classe II pelo valor do seu crédito. Dentre as hipóteses apresentadas, parece que a avaliação realizada pelo administrador judicial, mediante a contratação de avaliadores oficiais, mostra-se como a solução mais segura ao caso, cabendo à jurisprudência a definição.

    3.4. Os créditos excluídos da recuperação judicial e a possibilidade da manutenção do bem objeto de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil na posse da recuperanda após o prazo de 180 dias

    A Lei n° 11.101/2005, em atendimento aos interesses das instituições financeiras, exclui da recuperação judicial alguns créditos de origem financeira, conforme se observa no art. 49, §3°:

    Art. 49.

    §3°. Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o §4° do art. 6° desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

    Ao comentar o art. 49, §3°, assevera Manoel Justino Bezerra Filho:

    “Esta disposição foi o ponto que mais diretamente contribuiu para que a Lei deixasse de ser conhecida como ‘lei de recuperação de empresas’ e passasse a ser conhecida como ‘lei de recuperação do crédito bancário’, ou ‘crédito financeiro’, ao estabelecer que tais bens não são atingidos pelos efeitos da recuperação judicial. (…)

    Ficará extremamente dificultada qualquer recuperação, se os maquinários, veículos, ferramentas, etc. com os quais a empresa trabalha e dos quais depende para seu funcionamento, forem retirados.”

    (BEZERRA FILHO, 2005. p. 136)

    De acordo com o art. 49, §3° c/c o art. 6°, §4°, da Lei n° 11.101/2005, com o deferimento do processamento da recuperação judicial verifica-se a suspensão das ações e execuções em face da Recuperanda, sendo vedado, no prazo de 180 dias, a retirada do estabelecimento da Recuperanda de bens de capital essenciais à atividade empresarial.

    Durante o prazo previsto, a lei assegura que a Recuperanda seja mantida na posse do bem essencial ao desenvolvimento da empresa. No caso, é evidente que o prazo legal de 180 dias é extremamente exíguo e insuficiente para qualquer superação de crise que tenha exigido o pedido de recuperação judicial e causado a suspensão dos pagamentos.

    Analisado de forma isolada, o prazo legal de 180 dias mostra-se improrrogável. Entretanto, tratando-se de bem de capital essencial ao desenvolvimento da atividade empresarial pela Recuperanda, a retirada do bem do seu estabelecimento poderia impedir que a finalidade da recuperação judicial fosse alcançada de forma efetiva, frustrando-se o art. 47 da Lei n° 11.101/2005.

    Diante das dificuldades decorrentes da aplicação dos arts. 49, §3° e 6°, §4°, da lei de regência, que colocam em risco o êxito da recuperação judicial no país, existem decisões judiciais e entendimentos doutrinários que não admitem a retirada dos bens essenciais da Recuperanda, mesmo após o decurso do prazo de 180 dias.

    Justifica-se esse posicionamento com base no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, que corresponde ao artigo mais importante da legislação, conforme amplamente divulgado pelos especialistas no tema. Referido dispositivo legal determina a finalidade da recuperação judicial a partir de princípios indicados pelo legislador, conforme se observa:

    “Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

    A relevância do art. 47 encontra-se expressada por Newton de Lucca da seguinte forma:

    “Trata-se do artigo que instituiu a maior novidade da NLF. Pode-se dizer, em certo sentido, que ele traduz o espírito que terá enfornado toda a nova disciplina jurídica que acaba de ser dada à estampa em fevereiro do corrente ano de 2005.”

    (DE LUCCA, 2005. p.202)

    Calixto Salomão Filho, ao se referir à Lei n° 11.101/2005, conclui:

    “Pressupõe e inclui princípios que não podem ser negados ou descumpridos, qualquer que tenha sido o grupo de interesses que mais influenciou sua elaboração. (…) é também necessário reconhecer que a recuperação de empresas pressupõe princípios e objetivos que não podem ser desconsiderados. O principal deles é o da preservação da empresa, expressamente declarado no art. 47 da Lei 11.101/2005, de 9 de fevereiro de 2005 (nova Lei de Falências), como princípio da recuperação de empresas.”

    (SALOMÃO FILHO, 2007. p.42.)

    O princípio da preservação da empresa foi expressamente aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência n° 79.170-SP. Na oportunidade, foi apreciado pelo STJ se o juízo diverso do da recuperação judicial teria competência para apreciar pedido de reintegração de posse contra a devedora, quando já transcorrido o prazo de 180 dias previsto na legislação.

    No caso, a Corte entendeu que o art. 47 “estabelece, inequivocamente, o objetivo de preservar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado”, de forma que o destino do patrimônio da recuperanda “não pode ser afetado por decisão prolatada em juízo diverso do que é competente para a recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso do plano de recuperação, ainda, que ultrapassado o prazo de suspensão”. Do contrário, estaria sendo violado o princípio da preservação da empresa, previsto expressamente no art. 47 da Lei n° 11.101/2005.

    O julgado do Superior Tribunal de Justiça,  acima indicado, é transcrito abaixo:“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES. PRAZO DE CENTO E OITENTA DIAS. USO DAS ÁREAS OBJETO DA REINTEGRAÇÃO PARA O ÊXITO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO. 1.  O caput do  art. 6º, da Lei 11.101/05 dispõe que “a decretação da falência ou deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário”. Por seu turno, o § 4º desse dispositivo estabelece que essa suspensão “em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação”. 2. Deve-se interpretar o art. 6º desse diploma legal de modo sistemático com seus demais preceitos, especialmente à luz do princípio da preservação da empresa, esculpido no artigo 47, que preconiza: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. 3. No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º, da Lei nº 11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade da empresa. 4. Precedentes: CC 90.075/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 04.08.08; CC 88661/SP, Rel. Min, Fernando Gonçalves, DJ 03.06.08. 5. Conflito positivo de competência conhecido para declarar o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo competente para decidir acerca das medidas que venham a atingir o patrimônio ou negócios jurídicos da Viação Aérea São Paulo – VASP. (STJ. CC 79170/SP. Rel. Min. Castro Meira. S1 Primeira Seção. DJ 10.09.2008)”

    Conforme se verifica, o julgado do Superior Tribunal de Justiça permite verificar que na busca da preservação da empresa as regras de natureza formal aplicadas ao processo de recuperação judicial (v.g. art. 49, §3° c/c art. 6°, §4°) podem ser relativizadas quando a sua aplicação colocar em risco a execução do plano de recuperação e o êxito da finalidade precípua prevista no art. 47 da Lei n° 11.101/2005. No caso exposto, cumpre ressaltar que o direito do credor restringido para assegurar a finalidade da recuperação judicial não ocorreu de forma definitiva, apenas a suspensão da sua eficácia foi prorrogada.

    O entendimento que determina a manutenção da posse de um bem do devedor em um contrato de arrendamento mercantil ou de alienação fiduciária não é inusitada, conforme se verifica nas seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:

    “AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM REINTEGRAÇÃO DE POSSE – TUTELA ANTECIPADA – BENS INDISPENSÁVEIS AO FUNCIONAMENTO DA EMPRESA – PRECEDENTES. Admissível se mostra a justificativa da recorrente quanto à necessidade de permanecer com os bens arrendados, considerando-se, ademais, que não se depara com demonstração em contrário, no que concerne à indispensabilidade do maquinário para a continuidade da atividade da empresa. Recurso especial provido.”

    (STJ. REsp n° 603.721. 3ª T. Rel. Min. Castro Filho. DJ 04.05.2004. v.u.)

    “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. PERMANÊNCIA DO BEM NA POSSE DA DEVEDORA. PRECEDENTES DA CORTE. 1. A jurisprudência da Corte tem entendido ser possível permanecer o bem na posse da devedora até o julgamento da demanda, quando essencial ao desenvolvimento de suas atividades produtivas, até mesmo em estágio de medida cautelar para conferir efeito suspensivo a recurso especial.

    2. Recurso especial conhecido e provido.”

    (STJ. REsp. n° 573.704-SP. 3ª T. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. DJ 29.06.2004. v.u.)

    “AGRAVO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – BUSCA E APREENSÃO – PERMANÊNCIA DOS BENS EM POSSE DO DEVEDOR. Em se tratando de maquinaria indispensável à atividade do devedor,

    porquanto meios necessários à obtenção de recursos para seu sustento, bem como para o pagamento do débito, é lícito que tais bens permaneçam em sua posse, enquanto se discute questões de fundo, tanto em ação revisional ou como matéria de defesa. Inexiste, no caso, ofensa ao art. 3.º do Decreto-Lei n.º 911/69.”

    (STJ. AGA n.º 225.784/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 23/10/2000)

    Conforme se verifica, mesmo nos casos em que a devedora não se encontra em processo de recuperação judicial, prestigia-se a manutenção da posse do bem objeto da lide, quando essencial à atividade empresarial da devedora. Justifica-se referido entendimento pelo fato da retirada do bem, seja no caso de reintegração de posse, seja na hipótese de busca e apreensão, interromper o desenvolvimento da atividade empresarial e agravar a situação de crise da devedora. Se mantida na posse do bem essencial, por meio da exploração da empresa a devedora conseguiria meios de realizar o pagamento do próprio bem.

     Transportando a questão para o âmbito de interesses de um processo de recuperação judicial o tema ganha proporções ainda maiores, diante das consequências decorrentes perante os demais credores, trabalhadores e parceiros comerciais da Recuperanda.

    O risco da paralisação do desenvolvimento da atividade econômica pela remoção de bem essencial à cadeia produtiva atinge diretamente a finalidade da recuperação judicial, expressamente prevista no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, não se mostrando a solução adequada no presente caso, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, acima exposto.

    A justificativa para a permanência do bem arrendado no estabelecimento da Recuperanda, sob a sua posse, mostra-se amplamente admissível, considerando-se os interesses envolvidos. Por outro lado, não se vislumbra desvantagem significativa para o  credor nesse caso, afinal, o interesse é no recebimento do valor devido, não no bem propriamente considerado.

    Nesse sentido, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

    “ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – Bem alienado fiduciariamente – Pessoa jurídica em recuperação judicial – Diante da essencialidade do bem alienado fiduciariamente, deve o mesmo permanecer com a pessoa jurídica empresária em recuperação judicial – Interpretação sistemática dada ao art. 6°, “caput” com o art. 47, ambos da Lei 11.101 /05. – Agravo provido. (TJSP. Ag. I. 990.09345481-5. 25ª Câmara de Direito Privado. Rel. Antonio Benedito Ribeiro Pinto. DJ 12.04.2010)

    Sem dúvida trata-se de questão de grande complexidade que tem atormentado a vida dos Magistrados, que reconhecem a impropriedade da lei, criticando-a expressamente, mas se rendem, muitas vezes, a sua força. Nesse sentido, a seguinte decisão, em que foi Relator o ilustre Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho:

    “Alienação fiduciária – Busca e apreensão – Liminar indeferida, mantendo os bens na posse da empresa devedora – Recuperação judicial da arrendatária – Credor proprietário fiduciário – Inaplicabilidade do artigo 49, § 3o da Lei n° 11.101/2005, tendo em vista o decurso do prazo de 180 dias – A busca e apreensão em alienação fiduciária contratada com sociedade empresária requerente de recuperação judicial, não pode ser efetuada no prazo de 180 dias, a contar do deferimento do processamento do pedido de recuperação, por força do § 3o do artigo 49, c.c. o § 4o do artigo 6o da Lei 11.101/05. Superado este prazo, a recuperação deve estar concedida (art. 58) ou a falência terá sido decretada, não constituindo mais o processamento do pedido de recuperação óbice ao prosseguimento do pedido de busca e apreensão e conseqüente exame do pedido liminar. Pode-se – e deve-se – criticar a disposição legal que, ao que parece, preocupou-se mais com o favorecimento ao capital financeiro do que propriamente com a possibilidade de recuperação da sociedade empresarial; no entanto, a lei está posta e, pelo menos por ora e nestes autos, não se vislumbra possibilidade de decisão diversa. – Recurso provido, v.u.” (TJSP. Ag.I. 990100816187. 35ª Câm. Dir. Privado. Rel. Manoel Justino Bezerra Filho. DJ 25.04.2010.)

    A Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não possui o mesmo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, prestigiando a análise restrita do art. 6°, §4° da Lei n° 11.101/2005, em detrimento do art. 47 da mesma lei, conforme se verifica abaixo:

    Ementa: Recuperação judicial. Indeferimento do pedido de prorrogação do prazo de 180 dias previsto no § 4o, do art. 6°, da Lei n° 11.101/2005. Prazo improrrogável. Na recuperação judicial a suspensão do processamento das ações e execuções prevista no “caput” do art. 6°, “em nenhuma hipótese excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado …

    “Agravo. Recuperação judicial. Indeferimento do pedido de prorrogação do prazo de 180 dias previsto no § 4o, do art. 6°, da Lei n° 11.101/2005. Prazo improrrogável. Na recuperação judicial a suspensão do processamento das ações e execuções prevista no “caput” do art. 6°, “em nenhuma hipótese excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente do pronunciamento judicial”. Agravo improvido. (TJSP. Ag.I. 990101241510. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Pereira Calças. DJ 04.05.10).

    Diante das controvérsias, verifica-se ser a questão uma das mais complexas da recuperação judicial. Por um lado, prestigia-se a interpretação restritiva da lei, não se admitindo a prorrogação do prazo de 180 dias em nenhuma hipótese, ainda que a retirada dos bens essenciais da recuperanda comprometa a execução do plano de recuperação judicial e possa acarretar a sua falência. Por outro lado, a aplicação sistemática da Lei n° 11.101/2005, tendo o art. 47 como foco principal, assegura a manutenção do bem essencial no estabelecimento da recuperanda e contribui para o cumprimento do plano de recuperação, permitindo a manutenção da empresa e do emprego dos trabalhadores, contribuindo para o êxito da recuperação ao mesmo tempo em que impõe dificuldades para o credor financeiro receber o seu crédito.

    A equalização dos interesses envolvidos não constitui tarefa simples e divide entendimentos. Considerando a possibilidade da consolidação da interpretação sistemática da Lei n° 11.101/2005, conforme se vislumbra pelas manifestações do Superior Tribunal de Justiça,  para assegurar o êxito da recuperação nos termos do seu art. 47, há a necessidade dos credores financeiros repensarem a estratégia para o recebimento dos créditos decorrentes de alienação fiduciária e de arrendamento mercantil, excluídos da recuperação judicial pela lei para o benefício desses credores, em detrimento do sucesso da própria  recuperação.

    Talvez a inclusão no plano de recuperação judicial dos créditos financeiros excluídos por força do art. 49, §3°, constitua uma forma de reajustar os desajustes decorrentes da lei pelos próprios participantes da recuperação, sob pena do necessário reajuste decorrer do Poder Judiciário, conforme vem se verificando pelas decisões do  Superior Tribunal de Justiça e pelos magistrados que seguem o mesmo entendimento da Corte Superior.

    Nesse aspecto, vale lembrar que o disposto no art. 57, ao exigir as certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial, foi interpretado como sanção política e afastado pelas decisões judiciais. Ainda que algumas decisões  justifiquem a não aplicação do art. 57 pela ausência de regulamentação específica para o parcelamento tributário previsto no art. 68 da Lei n° 11.101/2005, o fato é que nesse caso o que está previsto expressamente na lei não está sendo exigido, do contrário, a concessão da recuperação judicial no país dificilmente ocorreria.

    Portanto, considerando o risco de falência em razão da retirada de bens essenciais do estabelecimento da recuperanda, não se pode negar que a tendência é pela interpretação sistemática da lei visando a assegurar o êxito da recuperação judicial. Nessa perspectiva, a inclusão no plano de recuperação dos créditos excluídos pela lei pode ser a melhor forma de garantir o sucesso da recuperação e de resguardar os interesses dos credores financeiros. De acordo com a legislação vigente, essa inclusão torna-se possível com a concordância dos credores financeiros, a quem cabe a opção entre receber o crédito na forma prevista no plano a ser aprovado na Assembleia Geral de Credores ou buscar outras formas de assegurar os seus direitos, lembrando que poderá enfrentar dificuldades na retirada dos bens essenciais do estabelecimento da recuperanda.

    3.5. A apresentação de objeções ao plano e a convocação da Assembleia Geral de Credores

    A questão da convocação da Assembleia Geral de Credores (AGC) mediante a simples apresentação de objeções ao plano é matéria enfrentada pela doutrina. Trata-se de questão relativamente recente e que desperta interesse em razão da apresentação de objeções, em alguns casos, ocorrer como mero cumprimento de protocolo de conduta e, em outros casos, como ato que pode caracterizar, até mesmo, abuso de direito.

    O art. 55 da Lei n° 11.101/2005 prevê que qualquer credor pode apresentar objeção ao plano. Entretanto, é evidente que a objeção deve conter  fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada, do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial.

    A objeção deve ser elaborada de forma criteriosa e responsável pelo credor, diante da possibilidade de configurar abuso de direito e, dependendo do caso, caracterizar até mesmo litigância de má-fé, em razão dos interesses relacionados e da conseqüência prevista no art. 56, caput, da Lei n° 11.101/2005:

    “Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação”

    Diante da respectiva previsão legal, surgem as seguintes indagações: a) a apresentação de objeções por credores não sujeitos ao plano exige, necessariamente, a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz?  b) a apresentação de objeções contendo elementos que podem ser facilmente solucionados diante de manifesto equívoco exige necessariamente a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz?

     Sem dúvida trata-se de questões de grande complexidade, que exige análise cuidadosa e voltada para a finalidade da lei, diante dos interesses envolvidos. A princípio, considerando exclusivamente o disposto no art. 56, caput, a resposta seria positiva para as duas perguntas apresentadas acima. Entretanto, quando ocorre a análise sistemática da lei,  a clareza do art. 56 desaparece e a certeza da afirmativa antes apresentada não resiste ao disposto no art. 45, §3°:

    “§3°. O credor não terá o direito a voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito”

    Nesse sentido, assevera o consagrado Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho, ao comentar o art. 45 da Lei n° 11.101/2005:

    “O §3° estipula, ainda, que apenas tem direito a voto nas deliberações sobre o plano de recuperação o credor cujo crédito vier a ser alterado em seu valor ou nas condições de pagamento. Se o crédito não sofre qualquer alteração, o respectivo credor não tem direito a voto, além de não poder ser computada sua presença para fins de verificação de quorum”.

    (BEZERRA FILHO, 2005. p. 126)

    De acordo com os dispositivos apresentados, qualquer credor poderá apresentar objeção ao plano, mas, não é qualquer credor que poderá votar na Assembleia Geral de Credores nas deliberações referentes ao plano. A convocação da Assembleia Geral de Credores estabelece ônus para a Recuperanda e também para os credores sujeitos ao plano, retardando o deferimento da recuperação judicial e o respectivo início dos pagamentos previstos, além das despesas impostas à Recuperanda (convocação e realização da AGC) e aos credores (viagens e hospedagens).

    O respeitado jurista Adalberto Simão Filho, ao tratar do sistema de aprovação tácita do plano de recuperação judicial, enfrenta a questão, apresentando entendimento inovador:

    “Este sistema é criado a partir do artigo 55 da lei, que concede a qualquer credor a possibilidade de manifestar ao juiz a sua objeção ao plano de recuperação judicial. O credor poderá objetar o plano, no curso do prazo de 30 (trinta) dias contados ou da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do artigo 7º, ou da publicação do aviso do artigo 53 sobre o recebimento do plano de recuperação, caso na primeira hipótese ainda não se tenha o plano nos autos.

    Esta objeção ao plano de recuperação, quando formulada nos moldes da lei, leva à necessidade de convocação de Assembleia Geral de credores por parte do Juiz.

    Contudo, a lei não menciona acerca da natureza da objeção que possa levar o juiz à convocação da assembleia. Será qualquer objeção de ordem formal ou material que gerará esta conseqüência? Pensamos que não. Pode haver objeção que não se relaciona efetivamente ao plano de recuperação, mas sim a questões de diversas ordens que possam envolver o credor que objetou e a devedora, concernentes ao negócio jurídico subjacente.

    Ainda, pode ser apresentada como objeção, alguma inconformidade por parte de credor que sequer é concorrente na recuperação judicial.

    Pode ainda o devedor, prontamente, refutar os argumentos de objeção a demonstrar que os mesmos não são válidos, gerando o conformismo daquele que objetou.

    Nestes casos e assemelhados, entendemos pela desnecessidade da convocação da assembleia de credores por parte do juiz.

    A objeção tem aqui a intelecção de contrariedade e esta contraposição deve ser formulada pelo credor diretamente sobre o plano de recuperação judicial, seu conteúdo, consistência e fundamento, gerando assim, a necessidade de convocação de Assembleia Geral.

    Todavia, uma vez não havendo objeção de qualquer credor ou, ainda, solucionados os temas que possam ter gerado objeção com uma posição favorável daquele que objetou, após o curso do prazo previsto no artigo 55, o juiz concederá a recuperação judicial, por ter entendido ter sido o plano aprovado tacitamente. A este conjunto de providências que redundam na aprovação do plano, demos a denominação de sistema de aprovação tácita e o seu fundamento se encontra na primeira parte do caput do artigo 58 da lei”.                  (SIMÃO FILHO, 2009. pp. 49-50)

    Considerando a conseqüência decorrente da apresentação de objeção ao plano, que pode ser realizada por qualquer credor, o juiz deve analisar o conteúdo da objeção para verificar se a mesma apresenta fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada, do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial.

    O  art. 56 da Lei n° 11.101/2005 deve ser interpretado em consonância com os demais dispositivos legais, de forma a não servir de meio protelatório a favor de devedor mal intencionado ou para atender pretensões infundadas de credor, em detrimento dos legítimos interesses dos demais credores.

    Nesse contexto, ressalta-se a importância do Juiz na identificação das referidas questões. A Lei n° 11.101/2005 atribui poderes, funções e atribuições maiores e mais amplos ao juiz na condução do processo de recuperação da empresa. Nesse sentido, o art. 58, §1°, demonstrando que o juiz mantém o poder de decisão nos autos, prevê situação na qual, mesmo rejeitado o plano pela Assembleia Geral de Credores, o juiz poderá conceder a recuperação pretendida pelo devedor.

    Ao tratar da atuação do juiz no processo de recuperação judicial, Jorge Lobo ressalta:

    “Na ação de recuperação judicial, o juiz exerce poder-fim, portanto de cunho jurisdicional, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, caput; 55, caput; 56, §4°; 58, caput e §1°; 63; exerce poder-meio, por conseguinte instrumental, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 51, §§ 1° e 3°; 52, III e V e §1°; 53, parágrafo único; 65, caput e § 2°, e exerce poder administrativo, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, I, II e IV, §1°; 60; 66; 69, parágrafo único.

    É curial que, ao exercer os poderes de caráter jurisdicional, instrumental ou administrativo, o juiz não é um órgão passivo, mero homologador das decisões da assembleia geral ou do comitê de credores ou do administrador judicial, pois, ao ordenar o processamento da ação, proferir despachos, decisões e sentenças, superintender a administração da empresa em crise, enfim, presidir o processo de recuperação, deve fazê-lo com tirocínio, competência e plena liberdade, formando sua convicção, seu ‘livre convencimento’, de acordo com as provas dos autos, ciente de que seus atos estão sujeitos a recurso de agravo.”   

    (LOBO, 2007. p.171)

    Manoel Justino Bezerra Filho, ao comentar o art. 56 da Lei n° 11.101/2005, ressalta os poderes do juiz para verificar se as objeções apresentadas são suficientes para motivar a convocação da Assembleia Geral de Credores:

    “Terá o juiz que se valer de seu poder de direção do processo e examinar, para formação de conhecimento provisório sobre a viabilidade (ou não) de existência do crédito e, a partir da convicção, também provisória, que formar, decidir se deve ou não convocar a assembleia-geral”

     (BEZERRA FILHO, 2005. p.165)

    Ressaltando a necessidade de ser atribuído ao julgador atuação além dos limites literais da lei para assegurar o princípio da preservação da empresa, a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

    “Agravo de Instrumento – Recuperação Judicial – Aprovação do Plano – Critérios. Ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando – Quanto à previsão de pagamento em ações de sociedade anônima, evidente que não se confunde com constrangimento do Agravante a associar-se, não só porque o Agravante não precisa participar ativamente da nova sociedade, usando as ações como valores mobiliários, como porque poderá livremente negociá-las. Agravo desprovido. (TJSP. Ag. Inst. 6577334600. Rel. Lino Machado. DJ 27.12.2009)

    Em consonância com os entendimentos destacados e de acordo com a interpretação sistemática da Lei n° 11.101/2005 prestigiada pelo Superior Tribunal de Justiça, destinada a assegurar o êxito da recuperação judicial, nos termos do art. 47, ressalta-se a inovadora decisão do ilustre Magistrado Ronaldo Guaranha Merighi:

    “Acontece que os créditos dos que objetaram não sofreram modificação alguma por conta do plano de recuperação. Vale dizer: mantiveram-se nas condições originalmente contratadas, conforme o disposto no §2º, primeira parte, do art. 49, da Lei 11.101/05. Ora, não obstante o disposto no art. 55, evidentemente só pode objetar o credor que tenha interesse jurídico. E esse interesse, pelo tipo de crédito, pela não alteração pelo plano e pelo que foi objetado, não se verificou na situação vertente. Logo, efetivamente, o disposto no art. 56 deve ser interpretado em consonância com o disposto no art. 45, §3°. Afinal, o credor não sujeito ao plano, que não tem direito a voto e não é considerado para fins de quorum, só de modo excepcionalíssimo, poderia gerar o dever de convocação de assembleia. Nunca no caso concreto, que as objeções são flagrantemente inconsistentes. Poder-se-ia argumentar que somente a assembleia teria poderes para deliberar sobre plano. Mas, aqui, de se invocar a Doutrina colacionada pelo Administrador: ‘A objeção tem aqui a intelecção de contrariedade e esta contraposição deve ser formulada pelo credor diretamente sobre o plano de recuperação judicial, seu conteúdo, consistência e fundamento, gerando assim, a necessidade de convocação de Assembleia Geral. Todavia, uma vez não havendo objeção de qualquer credor ou, ainda, solucionados os temas que possam ter gerado objeção com uma posição favorável daquele que objetou, após o curso do prazo previsto no artigo 55, o juiz concederá a recuperação judicial, por ter entendido ter sido o plano aprovado tacitamente. A este conjunto de providências que redundam na aprovação do plano, demos a denominação de sistema de aprovação tácita e o seu fundamento se encontra na primeira parte do caput do artigo 58 da lei’. (SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In DE LUCCA, Newton & DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito Recuperacional: Aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Quartier Latin. 2009. pp. 49-50). Em outras palavras, os credores que tinham interesse jurídico de oferecerem objeção e não o fizeram aprovaram tacitamente o plano e a convocação imotivada da assembleia prejudicaria não só interesses da recuperanda mas também destes próprios credores. No mais, invocando como razão de decidir os argumentos alinhavados pelo Administrador, INDEFIRO as objeções pelos fundamentos já alinhavados e DEIXO DE CONVOCAR A ASSEMBLEIA de credores de que cuida o art. 56, da Lei de Regência.”

    (Processo n° 358.01.2009.003284-3. 3ª Vara Judicial de Mirassol, SP. Mag. Ronaldo Guaranha Merighi. DJ. 12.03.2010).

    Conforme se verifica, a simples apresentação de objeções ao plano não deve constituir pressuposto inarredável para a convocação da Assembleia Geral de Credores. Muitas vezes as objeções abrangem questões que podem ser facilmente esclarecidas sem a convocação da AGC. Diante de objeções manifestamente inconsistentes pelos equívocos dos seus conteúdos, o juiz deve, visando à celeridade processual, atender aos interesses dos credores e da própria recuperação judicial, buscar soluções que permitam o saneamento dos pontos controvertidos.

    Considerando os poderes conferidos ao juiz, uma vez constatado que as objeções apresentam pontos que podem ser solucionados sem a convocação da AGC, parece que a determinação judicial para a manifestação da recuperanda e do próprio administrador judicial sobre as objeções pode constituir uma forma eficiente para solucionar os pontos controvertidos e evitar, muitas vezes, a convocação desnecessária da AGC.

    Imagine-se uma objeção apresentada por credor não sujeito ao plano que discorde do prazo de parcelamento apresentado e da ausência da previsão de pagamento de juros e correção monetária por entender, equivocadamente, estar o seu crédito sujeito ao plano. Constatado o equívoco, existindo manifestações da recuperanda e do administrador judicial demonstrando a não sujeição do crédito do objetor ao plano, a questão é esclarecida e o credor verifica que poderá cobrar o seu crédito imediatamente, não se encontrando sujeito às condições de pagamento previstas no plano.

    Se houvesse a convocação da AGC o credor objetor não teria direito a voto e o seu crédito não seria considerado, nos termos do art. 45, §3°, nem mesmo para a verificação do quorum de deliberação sob o plano. No caso, a AGC seria convocada em razão da objeção apresentada por um credor que não poderia, por meio do seu voto, aprovar, alterar ou rejeitar o plano apresentado, mostrando-se totalmente desnecessária.

    Convocada a AGC em razão da aludida objeção, os credores sujeitos ao plano que já o aprovaram tacitamente, mediante a ausência  da apresentação da objeções, seriam convocados para participarem da AGC para votarem no plano com o qual eles já haviam concordado, lembrando que a participação na AGC exige despesas com viagens, alimentação, hospedagem, dentre outros. Por outro lado, rejeitada a objeção após os esclarecimentos dos equívocos constatados, o juiz poderia deferir a recuperação judicial e o processo ingressaria diretamente na fase de execução, sem a convocação da AGC.

    O entendimento apresentado mostra-se adequado e prestigia a celeridade e a economia processual, bem como o interesse dos credores e a finalidade da recuperação judicial, prevista no art. 47 da lei de regência. Entretanto, a redação do art. 56, caput, pode constituir obstáculo à sua concretização se não houver por parte dos Tribunais a atenção necessária na busca da aplicação sistemática da Lei n° 11.101/2005, conforme determinado pelo Superior Tribunal de Justiça.

    3.6. A conservação dos direitos dos credores perante os coobrigados da recuperanda

    O art. 49, §1°, da Lei n° 11.101/2005 assegura aos credores da recuperanda a conservação de seus direitos em relação aos coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, permitindo que os credores possam, mesmo com a recuperação judicial, promover a execução de seus créditos contra avalistas, endossantes e fiadores da recuperanda. Na hipótese da recuperanda ter emitido uma nota promissória que contém um aval ou ter celebrado um contrato de mútuo com fiador, mesmo que o crédito decorrente da nota promissória ou do contrato sujeite-se aos efeitos da recuperação, o credor pode executar o avalista ou o fiador de acordo com o título que apresente a garantia pessoal, independentemente do que esteja previsto no plano de recuperação judicial.

    Embora o texto legal mostre-se bastante claro e objetivo, é possível a identificação de quatro correntes distintas sobre a questão. A primeira delas prestigia o texto legal, assegurando ao credor exercer os seus direitos contra os coobrigados, na forma prevista no art. 49, §1°, conforme se verifica nas seguintes decisões:

    “Execução – Avalista – Recuperação judicial prevista na Lei 11.101/2005 que não atinge os direitos de crédito detidos em face de devedores solidários, fiadores e avalistas, podendo o respectivo titular exercê-los em sua inteireza – Aplicação do § 1o do art. 49 da Lei 11.101/2005 – Embargante, pessoa física, que figurou no pólo passivo da execução em virtude de ser avalista. Execução – Avalista – Novação da dívida que não impede o banco embargado de promover a execução em face do avalista – Art. 59 da Lei 11.101/2005 que prevê, expressamente, a preservação das garantias do crédito – Novação pre­vista no art. 59 da Lei 11.101/2005 que não tem a mesma natureza jurídica do instituto regrado pelo art. 360 do CC. Execução – Avalista – Inaplicabilidade do art. 365 do atual CC – Prevalência da norma especial inserida no art. 59, “caput”, da Lei 11.101/2005 – Caso em que não se verificou a perda superveniente do interesse processual do banco embargado. Execução por título extrajudicial – Contrato de mútuo intitulado de “Cédula de Crédito Bancário” – Instrumento formalmente perfeito – Documento assinado pela devedora principal, pelo embargante, pelo devedor solidário e por duas testemunhas – Banco embargado que possui título executivo extrajudicial hábil a promover a execução – Art. 585, II, do CPC – Documento revestido dos re­quisitos da certeza, liquidez e exigibilidade. (…)” (TJSP. Ap. 990100036645. 23ª Câm. Dir. Privado. Rel. Rizzato Nunes. DJ 07.04.2010)

    “AGRAVO DE INSTRUMENTO – Ação de execução -Embargos do devedor – Recebimento no efeito suspensivo – Alegação de que a recuperação judicial da devedora principal não atinge as obrigações do agravado e de inexistência dos requisitos necessários à concessão do efeito suspensivo – Recuperação judicial – Cabimento da suspensão das ações intentadas somente contra a pessoa jurídica – Prosseguimento das ações em relação aos devedores solidários – Exegese da Lei n° 11.101/05 – Recurso provido.” (TJSP. Ag. I. 990093303647. 20ª Câm. Dir. Privado. Rel. Miguel Petroni Neto. DJ 14.06.2010)

    A segunda corrente mostra-se totalmente contrária ao disposto no art. 49, §1°, entendendo que os coobrigados também são beneficiados pela recuperação judicial, conforme se verifica abaixo:

    “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – Acórdão que deu parcial provimento a agravo instrumento, para, após a garantia integral do juízo, suspender o andamento da execução contra os devedores solidários de empresa em recuperação judicial – Existência de omissão e contradição que ficam supridas com a complementação da fundamentação, mas sem o pretendido efeito infringente – Embargos de ambas as partes acolhidos em parte”.

    Trecho do acórdão:

    (…) Com a devida vênia das alegações da exequente, inclusive fundamentada em decisões desta C. 16ª Câmara de Direito Privado, não há que se falar em negativa de vigência dos dispositivos legais da nova Lei de Falências e Recuperações Judiciais (11.101/05), tendo em vista que o Acórdão fundamentou sua posição nas disposições do artigo 739-A do Código de Processo Civil, entendendo ser relevante a argumentação dos executados quanto à cobrança em duplicidade do crédito. Em nenhum momento o Acórdão mencionou a extinção da responsabilidade solidária dos agravantes, tanto que deu apenas provimento em parte ao agravo, desacolhendo a pretensão de extinção da execução. Não se trata de desrespeito às disposições legais que preservam as garantias do credor contra os coobrigados, mas sim de se estabelecer uma ordem lógica de preferência para cobrança da dívida, aguardando-se o resultado do processo de recuperação judicial, conforme o plano estabelecido na assembleia de credores. Nesse sentido, pertinente a transcrição de parte do Acórdão da Apelação n. 7.166.479-6 da 21ª Câmara de Direito Privado deste E. Tribunal, relator o Des. Souza Lopes, j . 31/10/2007:

    “A questão de fundo é saber se, com o deferimento da recuperação judicial, o sócio da empresa que garante o contrato, ou mesmo títulos de crédito, é atingido, ou não, pelos efeitos daquela lei concedendo o benefício legal. A esse respeito, deve ser destacada a posição do ilustre Magistrado Mauro Conti Machado, que, em brilhante voto do Agravo de Instrumento n” 7.158.047-9, assinala: “A redação do artigo 6o da Lei 11.101 de 2005, ao falar em suspensão da obrigação com a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial, suspende o curso da prescrição de todas as ações e execuções promovidas em face do devedor, inclusive contra aquelas dos credores particulares, dos sócios solidários, não quer dizer que suspende, também, as ações em face aos devedores solidários do devedor principal. A interpretação deve ser promovida de forma lógico-sistemática, com a adoção do principio teleológico, excluindo-se aquela que resulte no absurdo, e se é princípio elementar de hermenêutica que deve ser realizada visando os fins práticos que foram relevados pelo legislador no momento normogenético de criação da norma, deve-se perguntar, primeiro, se o devedor solidário principal confunde-se, aqui, com os credores particulares do sócio solidário.  Uma situação jurídica não leva naturalmente a outra. É princípio elementar de hermenêutica que a inclusão de um implica na exclusão do outro, onde a lei não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo, pois a norma jurídica não é um salto no vazio despida de valores, mas, sim, a regra que impõe, visando o bem comum, com a preservação do mínimo ético, que é a finalidade última do próprio Estado, no plano lógico, para explicar o fenômeno do direito. Assim, se é inequívoco que a norma quis considerar, neste caso, o credor particular do sócio solidário, cuja existência afeta também a massa objetiva que se formará com a falência e que, por injunção lógica, acarretará reflexos em concreto na recuperação judicial, que não se confunde com a do devedor solidário do devedor principal, logicamente, pois não se estará diante de uma situação jurídica, porém, diversa, inconfundível. “

    Portanto, não há como se concluir de forma diversa, ou seja, os sócios da empresa que obteve a recuperação judicial, com a homologação do plano para pagamento futuro de seus credores, devedores solidários que são, seja como avalistas, ou qualquer outra espécie de garante, são atingidos pelo efeito, repita-se, do benefício da recuperação judicial. Do contrário, estar-se-ia avalizando o absurdo de se ter a pessoa jurídica como beneficiária, enquanto os sócios, devedores solidários que são, sofreriam o prosseguimento de execução.” É certo que no mencionado julgamento da 21a Câmara, seus integrantes entenderam pela inexigibilidade do título exeqüendo, extinguindo por completo a execução, enquanto esta C. 16a Câmara adota uma posição mitigada, determinando apenas a suspensão da execução até que se tenha o desfecho da recuperação judicial. Contudo, o raciocínio lógico das fundamentações é exatamente o mesmo, qual seja, a impossibilidade de cobrança simultânea da mesma dívida em processos distintos. A extinção ou não da execução dependerá do resultado obtido nos autos da recuperação judicial.” (TJSP. Emb. de Declaração 991090015542. 16ª Câm. Dir. Privado. Rel. Windor Santos. DJ 06.04.2010)

    A terceira corrente prestigia o caráter contratual da recuperação judicial, estendendo os efeitos da novação aos coobrigados desde que prevista no plano de recuperação judicial e que os credores sujeitos aos seus efeitos a tenham aprovado sem qualquer restrição. No caso, os credores que não compareceram à assembleia, votaram contra ou se abstiveram não são atingidos pela previsão constante no plano, prevalecendo o disposto no art. 49, §1°, em relação a esses credores.

    No caso, considera-se a possibilidade da recuperanda incluir no plano cláusula expressa estabelecendo que a novação prevista no art. 59, caput, da Lei n° 11.101/2005 será aplicada aos coobrigados, devedores solidários, avalistas e fiadores. Manoel de Queiroz Pereira Calças ressalta que as garantias pessoais de natureza patrimonial constituem direitos disponíveis, inexistindo qualquer empecilho legal para que os credores da recuperanda concordem ou discordem da cláusula extensiva dos efeitos da novação a coobrigados, fiadores e avalistas (CALÇAS, 2009, p.127).

    De acordo com essa terceira corrente, a novação prevista no plano em face das garantias fidejussórias não se aplica aos credores presentes que se abstiveram de votar o plano ou o rejeitaram e aos credores ausentes. Para que a novação seja aplicada aos coobrigados, excepcionando o disposto no art. 49, §1°, é necessária a anuência expressa dos credores, que voluntariamente concordam com a previsão excepcional constante no plano.

    As decisões abaixo demonstram a aplicação desta terceira corrente:

    “Recuperação judicial. Agravo de instrumento. Plano de recuperação judicial que contém cláusula que estende os efeitos da novação aos coobrigados, devedores solidários, fiadores e avalistas. Concessão do plano com aplicação do “cram down” do art. 58, § 1o e incisos da LRF. A novação prevista como efeito da recuperação judicial não tem a mesma natureza jurídica da novação disciplinada pelo Código Civil. Pretensão de credor de acolhimento de sua objeção colimando a nulidade da cláusula extensiva da novação aos garantidores fidejussórios (fiadores e avalistas). Nulidade não reconhecida. Validade e eficácia da cláusula em face dos credores que expressamente aprovaram o plano, por se tratar de direito disponível, que ao assim votarem, renunciam ao direito de executar fiadores/avalistas durante o prazo bienal da “supervisão judicial”. Ineficácia da cláusula extensiva da novação aos coobrigados pessoais (fiadores/avalistas) em relação aos credores presentes à Assembleia-Geral que se abstiveram de votar, bem como aos ausentes do conclave assemblear. Evidente ineficácia da cláusula no que se refere aos credores que votaram contra o plano e, “a fortiori”, aos credores que formularam objeção relacionada com a ilegalidade da cláusula extensiva da novação. Agravo provido, em parte, para reconhecer a ineficácia da novação aos coobrigados por débitos da recuperanda, dos quais a agravante é a credora. Extensão dos efeitos deste julgamento aos credores ausentes, abstinentes e aos que formularam objeção à cláusula hostilizada”. (TJSP. Ag.I. 5805514000. 10ª Câm. Dir. Privado. Rel. Pereira Calças. DJ 19.11.2008).

    “Recuperação judicial – Coobrigados – Plano de recuperação aprovado pela assembleia-geral – Novação que não os atinge automaticamente – Ineficácia da cláusula extensiva da novação aos garantidores em se tratando de credor que votou contra a aprovação do plano – Prosseguimento da execução promovida pelo agravante contra avalistas – Recurso provido. (TJSP. Ag.I. 990100916904. Câm. Rservada à Falência e Recuperação. DJ 01.06.2010).

    A quarta corrente corresponde a uma variação da terceira e foi desenvolvida pelo Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho. De acordo com o ilustre falencista:

    “o que se pretende aqui é firmar posição no sentido de que a aprovação expressa do credor só é necessária para o caso do §1° do art. 50 (supressão de garantia real), não havendo qualquer outro dispositivo que faça a mesma exigência para as demais ‘garantias’, entre elas, a prestada pelo fiador, endossante, avalista e garantidores fidejussórios em geral. Em consequência, a decisão da AGC acatando a liberação do coobrigado obriga aqueles que estão sujeitos à recuperação, independentemente da concordância expressa ou mesmo do comparecimento do credor garantido. Ou seja, a decisão da AGC obriga a todos os credores sujeitos à recuperação, mesmo os discordantes e os ausentes.” (BEZERRA FILHO, 2009, p.133)

    Conforme se verifica, a questão é controvertida. Dentre os entendimentos apresentados, considerando a natureza contratual da recuperação judicial, parece que as duas últimas correntes apresentadas mostram-se mais adequadas ao caso concreto, cabendo apenas definir o alcance do disposto no plano em relação aos credores ausentes, abstinentes e que votaram contrariamente ao plano em caso do mesmo ser aprovado. De qualquer forma, diante das repercussões decorrentes, para assegurar os seus direitos contra os coobrigados, os credores devem ficar atentos ao conteúdo do plano para a definição da votação na Assembleia Geral de Credores.

    1. 4.      Considerações finais

    Conforme se observa, a Lei n° 11.101/2005 apresenta importantes pontos que permitem questionamentos e entendimentos conflitantes, principalmente diante dos inúmeros conflitos de interesses presentes no processo de recuperação judicial, exigindo do aplicador do Direito a interpretação sistemática da legislação em atenção à finalidade prevista no art. 47. Por outro lado, referido dispositivo, denominado por alguns como o “espírito da lei” e por outros como sendo o seu “coração”, deve ser aplicado dentro dos limites necessários à segurança jurídica.

    O estabelecimento desse limite constitui o ponto de maior dificuldade, correspondendo ao desafio imposto para assegurar que o princípio da preservação da empresa seja utilizado como um instrumento de interpretação das normas que disciplinam a recuperação judicial, para assegurar a finalidade da legislação e a função social da empresa. O princípio da preservação da empresa não pode ser adotado de forma absoluta e descriteriosa, não prevalecendo sempre que colidir com outros princípios e normas, notadamente os que fundamentam o interesse da coletividade dos credores, de forma a impedir de maneira definitiva e concreta o exercício dos seus direitos.

    A Lei n° 11.101/2005 apresenta dispositivos legais que exigem a aplicação ajustada pela doutrina e pela jurisprudência para o efetivo atendimento à finalidade prevista em seu art. 47, de forma a assegurar os fins previstos para a recuperação judicial, em especial a preservação da empresa e os seus fins sociais. Nesse contexto, o direito do credor deve ser compreendido no âmbito da recuperação judicial, analisando-se os demais fatores envolvidos, não parecendo adequada a interpretação literal e isolada de qualquer  dispositivo da Lei n° 11.101/2005, sob pena da finalidade prevista em seu art. 47 ser  seriamente comprometida por decisões que não prestigiem a interpretação sistemática da lei.

    Por fim, ressalta-se a importante função da jurisprudência, que em consonância com a doutrina, possui o importante papel de nortear a aplicação da lei de acordo com a sua finalidade precípua. Nesse contexto, Manoel Justino Bezerra Filho, consciente do imprescindível papel da jurisprudência, conclui:

    “Pela novidade que representa a recuperação judicial, vão surgindo problemas que à primeira vista trazem certa perplexidade para o intérprete, o que não espanta, vez que o entendimento de leis de espectro maior, tipo código (e esta Lei é efetivamente o ‘Código’ das Recuperações e das Falências), sempre exige interpretação jurisprudencial para correta aplicação” (BEZERRA FILHO, 2009, pp.129-30)

    Referências bibliográficas

    BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação  e Falências Comentada. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005.

    _____________. A responsabilidade do garantidor na recuperação judicial do garantido. In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. Ano XXIX. n° 105. São Paulo: AASP. Setembro de 2009.

    CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Novação recuperacional. In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. Ano XXIX. n° 105. São Paulo: AASP. Setembro de 2009.

    COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2005.

    COSTA, Ricardo Brito. Recuperação judicial: é possível o litisconsórcio ativo? In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. Ano XXIX. n° 105. São Paulo: AASP. Setembro de 2009.

    DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord). Comentários à nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin. 2005.

    LOBO, Jorge. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. TOLEDO, Paulo F. C. Salles de & ABRÃO, Carlos Henrique (coord.). São Paulo: Saraiva. 2007.

    SALOMÃO FILHO, Calixto. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antonio Sérgio A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de emrpesas e falência – Lei 11.101/2005 – artigo por artigo. 2 ed. São Paulo: RT. 2007.

    SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In DE LUCCA, Newton & DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito Recuperacional: Aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Quartier Latin. 2009.